Bairros e mobilização



No estudo sobre o movimento comunitário em atuação na cidade entre as década de 1970 e 1980, três casos específicos foram destacados como representantes do tipo de dinâmica característica das associações de bairro do período. Representavam as comunidades dos bairros Monte Castelo, Santa Luzia e São Bernardo e cada uma à sua maneira contribuiu para a valorização das práticas democráticas. Percorrendo as páginas dos jornais do período, as fotografias e os documentos dos movimentos comunitários de Juiz de Fora, inúmeras histórias de lutas são possíveis de serem contadas.
      Acredito que devem ser reconhecidos os méritos destes grupos, marcados pela heterogeneidade de participantes, reunidos em virtude do contexto de vizinhança, na busca por melhorias coletivas e pela promoção da participação política através do movimento reivindicativo em torno de melhores condições de vida e moradia. Política, por lutarem por igualdade na distribuição de equipamentos urbanos nos bairros mais carentes, por buscarem a conscientização e a informação sobre direitos e deveres sociais, por tornarem-se locais de discussão sobre os projetos políticos que sacudiam a cidade e o país. Sofriam, é certo, de inúmeras deficiências em diversos níveis de sua atuação. Desde o perfil da liderança que assumia por  vezes um tom mais autoritário  e intransigente, até  a forma de relacionamento com a prefeitura ou mais precisamente  com o  Executivo, que fazia dos laços pessoais fatores de grande peso no atendimento de demandas em detrimento de uma avaliação imparcial e técnica das solicitações.
         Ou seja, a existência de inúmeras formas viciadas de relacionamento foi, sim, uma das características marcantes destes movimentos e associações. Mas é preciso ainda lembrar que muitas outras associações funcionaram à margem deste sistema e que, da mesma forma, tornaram os bairros e seus moradores fortes, e suficientemente capazes de influir nas decisões dos governos.
De forma geral, as SPMs encerravam em si um movimento reivindicatório popular de real significado para a cidade, congregando pessoas, em sua maioria, sem maiores recursos financeiros que se reuniam periodicamente na intenção de procurar soluções para os problemas de seus bairros. Esta, sim, era uma das características mais importantes das sociedades de bairros da cidade. O número de reivindicações entregues à Prefeitura, por exemplo, em 1975 ultrapassou os 350 pedidos de obras, a maioria em caráter de urgência. As solicitações dos bairros sempre se tornavam mais frequentes nos meses de chuvas devido aos estragos provocados. Mas, além dos transtornos das chuvas, muitos bairros pediam também a implantação de infraestrutura básica, como telefones, táxis, escolas, ambulatórios e postos policiais. Algumas reivindicações recebiam tratamento prioritário e eram atendidas. [1]





A fundação da Sociedade Pró-Melhoramento do Bairro Monte Castelo ocorreu em 1959, com o objetivo de levar as reivindicações da comunidade ao conhecimento da administração pública. Durante a ditadura, os trabalhos sofreram certa inflexão, algo que ocorreu em praticamente todos os movimentos associativos, com maior ou menor intensidade, mas que não resultou na completa paralização da SPM. 
      Seria nas décadas de 1970 e 1980 que haveria uma retomada em sua dinâmica. No entanto, alguns fatores teriam comprometido o trabalho, como a presença de práticas autoritárias enraizadas na entidade de base e o medo presente entre as lideranças de se indisporem com o Executivo municipal. O relacionamento entre as diferentes SPMs também foi apontado como um dos problemas do período, havendo dificuldades na articulação e troca de experiências em virtude de competições pessoais. Muitos, ainda, acreditavam que a mobilização poderia ser funesta, fechando portas e cortando relacionamentos. Dessa forma, evitavam confrontos ausentando-se de mobilizações, por exemplo.[2]
Situado na zona norte da cidade, o Bairro Monte Castelo enfrentava diversos problemas como a falta de calçamento em algumas ruas, interrupções no abastecimento de água e transporte precário. Segundo reportagem do jornal Diário da Tarde, a influência política de moradores era fundamental para o atendimento das reivindicações. Mas o bairro contou também com inúmeras melhorias, fruto da dedicação de seus moradores e da SPM [3]. A partir de 1978, foram realizadas no bairro obras de infraestrutura que possibilitaram melhores condições de moradia, com a implantação de iluminação a vapor de mercúrio e o asfaltamento das principais vias. A construção da Escola Municipal Amélia Pires, de nível primário, também foi apontada como uma das principais conquistas. Segundo reportagem publicada pelo jornal Diário da Tarde, era comum entre os moradores a alusão ao espírito de cooperação.[4]
 Apesar dos protestos dos jovens, ansiosos por atividades novas e atualizadas, o bairro ainda sustentava o tradicionalismo das festas religiosas com barraquinhas, leilão e bandas de músicas no adro da Igreja. Existiam no bairro duas bandas musicais: uma masculina, a Sociedade Euterpe Monte Castelo, com cerca de trinta componentes; e a única banda feminina de Juiz de Fora, Lira Feminina de Monte Castelo, com cerca de vinte moças [5]. Era desta maneira que o bairro ia formando uma rede de solidariedade baseada no contexto de vizinhança





A comunidade do bairro Santa Luzia surgiu na década de 1930, com a povoação da região da Fazenda da Cachoeirinha, o que serviu, posteriormente, para denominar a região e a população que ali passava a residir. Quando o bairro ainda possuía o nome “Cachoeirinha”, a maior parte de suas ruas era sem calçamento. O córrego que o cortava foi responsável por inúmeras inundações das ruas e, desde os primórdios do bairro, esta era uma das principais reclamações de seus moradores. Em 1945, o bairro passou a denominar-se Santa Luzia e em 1966 foi formada sua Associação de Moradores, que, em 1975, era filiada à Federação dos Bairros. Neste período, a comunidade conquistou diversas melhorias, como o asfaltamento de ruas. A população de quase doze mil habitantes, segundo dados do Censo de 1979, possuía à sua disposição uma infraestrutura razoável, com mercados, mercearias, posto policial, e seus moradores orgulhavam-se em afirmar que o bairro era quase uma cidade.
No entanto, o crescimento desordenado fez com que muitas construções irregulares fossem feitas, atingindo encostas e provocando seu desmoronamento em épocas de chuva. No bairro, muitas ruas ainda não eram iluminadas na década de 1970 e o córrego não era totalmente canalizado. Durante toda a década, diversas foram as manifestações dos moradores através dos jornais, já que não se conformavam com a lentidão dos trabalhos executados, reivindicando prioridade. [6]
Assim como em muitos outros casos em Juiz de Fora, o início da associação de moradores do Bairro Santa Luzia pode ser buscado nas reuniões promovidas pela igreja local, através dos círculos bíblicos, das pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Com doze anos de fundação, em 1975, a SPM do Bairro Santa Luzia, entidade filiada à Federação, ainda se ressentia das dificuldades que passava todas as vezes que reivindicava alguma obra ou melhoria para o bairro.




Fundado em 16 de junho de 1970, o Grupo Comunitário São Bernardo (GCSB), localizado no bairro de mesmo nome, surgiu com a proposta de trabalhar para melhorar a vida de seus moradores e das comunidades em seu entorno como Vila São Sebastião, Marianinha, Belei, Cesário Alvim e adjacências[8]. Tinha como objetivo lutar por melhorias nos bairros, com reivindicações em torno de temas como educação, saúde, infraestrutura urbana, transporte e segurança. Além disso, procurava trabalhar na conscientização da população para a importância da participação e despertar em cada morador a noção de que, não obstante as aparentes diferenças sociais que pudessem existir, cada um possuía sua função na sociedade. Trabalhavam nas comunidades a representação do grupo como um relógio, no qual cada peça tem função indispensável em seu funcionamento . O trabalho de mobilização da população em torno do sentimento comunitário e para a necessidade de participação era uma das declaradas diferenças entre o Grupo e as SPMs [9].
O GCSB foi considerado de utilidade pública em sete de julho de 1972 por lei municipal. Fazia parte de sua filosofia o não envolvimento em questões político-partidárias e a não discussão de assuntos religiosos e políticos em suas reuniões. Estas restrições estão incluídas em seu estatuto e tinha como objetivo manter a independência e a isenção de seus trabalhos. Era, inclusive, vedada a participação de pessoas filiadas a partidos políticos. Mantinha seus trabalhos através da contribuição mensal de seus membros e enviavam ofícios a empresas, recebendo, destas, doações que eram empregadas na realização de promoções e desenvolvimento de projetos nos bairros de sua abrangência. Periodicamente, realizava almoços e confraternizações, festas beneficentes e gincanas a fim de arrecadar recursos para seus projetos. Exemplos de projetos executados foram as campanhas para dotar as residências de filtros para água, citadas anteriormente, e a campanha pela horta caseira, que procurava incentivar as pessoas a manterem uma alimentação saudável através do plantio de verduras e legumes em seus quintais. Construiu uma sede própria em terreno doado, onde eram realizadas as reuniões com a comunidade e entre seus dirigentes.
Segundo as fontes do GCSB e os jornais locais, até o início da década de 70 a comunidade era deficiente no que diz respeito à oferta de equipamentos urbanos. Esta deficiência teria origem no início da ocupação do bairro no início do século XX. A região foi loteada em 1928, porém sem planejamento urbanístico, o que resultou em uma ocupação irregular, com ruas mal traçadas e casas construídas fora de um alinhamento padrão. O bairro, localizado na zona leste da cidade, a cerca de 15 minutos do Centro, recebeu prontamente diversos moradores provenientes de bairros mais afastados e de cidades circunvizinhas que tinham seu trabalho na região central da cidade, com população predominante de operários e comerciantes [10].
Uma das primeiras conquistas do GCSB após sua constituição foi a desapropriação do terreno onde em 1975 seria inaugurada a Escola Municipal Amélia Mascarenhas, para atender a cerca de 200 crianças residentes em seu entorno. A construção, realizada em parceria com a Prefeitura, com projeto de autoria de um colaborador do grupo, foi uma das principais conquistas dos moradores [11]. No bairro fica localizado um dos mirantes da cidade, conhecido como Mirante do São Bernardo. Sua construção e reconhecimento como ‘ponto turístico da cidade’ recebeu grande incentivo do grupo que conseguiu a desapropriação do terreno e durante toda a década de 70 trabalhou por sua reforma e urbanização. Em outubro de 1978, juntamente com a Diretoria do GCSB, o então Secretário de Obras e Urbanismo, por determinação do prefeito, fez um estudo criterioso das necessidades do bairro e suas vilas, tendo por base o memorial enviado pelo grupo à Prefeitura contendo doze reivindicações. Consta que diversas das reivindicações apresentadas foram prontamente atendidas pela Municipalidade.
         A década de 70 e o início da década de 80 foram períodos especialmente produtivos para esse grupo que conseguiu, entre outras melhorias, a instalação de um ambulatório médico, a urbanização de diversas ruas e vilas, a construção de redes de esgoto e captação de águas pluviais, iluminação de ruas e telefones públicos nos logradouros dos bairros. No relacionamento com a comunidade, o grupo procurava destacar suas conquistas na intenção de atrair um maior número de moradores para suas causas. Diversos panfletos eram produzidos para divulgar a realização dos projetos e festejos em prol do bairro. 
O GCSB serve como um contraponto no estudo das associações de bairro da cidade, moldadas desde o seu surgimento no formato de SPMs, mas que se comportava de forma ainda mais destoante e independente. A eficiência do grupo em produzir decisões positivas na Municipalidade deve ser ressaltada como mérito de um movimento formado no contexto de vizinhança, declaradamente apolítico e apartidário, sem maiores pretensões ideológicas e sem maiores ligações com movimentos religiosos. Não possuía pretensões revolucionárias ou críticas mais profundas às políticas governamentais, mas procurava trabalhar pela inserção de seus representados nos benefícios públicos e terem suas demandas tratadas como direitos. Conseguiu, neste sentido, destacado sucesso, formando naquele momento uma comunidade forte e coesa, ciente de sua força na conquista de melhores condições de vida e de moradia.
 




[1] BAIRROS querem obras urgentes. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 1, 14 jan. 1975.
[2] Dados extraídos da Coleção Puxando pela Memória, sob a guarda do Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Documentos da Sociedade Pró-melhoramentos do bairro Monte Castelo. Código BR-AHUFJF-CDT014-004. Nível 3.série.
[3] MONTE CASTELO: Um vale de problemas, tradições e pobreza. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 3, 23 jun. 1975.
[4] MORADORES do Monte Castelo elogiam obras. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 2, 5 nov. 1979; MONTE Castelo: problemas, tradições e pobreza. Diário da Tarde, Juiz de Fora. 23 jun. 1975, Jornal de Bairro, p. 3.
[5]  MONTE CASTELO: Um vale e problemas, tradições e pobreza. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 3, 23 jun. 1975.
[6] SANTA LUZIA: Um bairro quase cidade com muitos problemas. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 3, 29 jul. 1975; SUJEIRA preocupa Santa Luzia. Diário da Tarde, Juiz de Fora. 26 fev. 1977, Jornal de Bairro, p. 2.
SANTA LUZIA acumula problemas à espera soluções do Prefeito. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 2, 27 abr. 1977; SANTA LUZIA: mais desabamentos. Diário da Tarde, Juiz de Fora, p. 3, 28 ago. 1979.
[7] VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Diferentes atores em papéis diversos: a barganha política no palco da gestão participativa em Juiz de Fora. (1983-1988). 1990. Dissertação  – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1990.
[8] GRUPO Comunitário São Bernardo. Estatuto. Juiz de Fora: 7 maio 1971.
[9] SÃO BERNARDO quer melhorias para suas ruas mal traçadas. Diário da Tarde, Juiz de Fora, 11 abr. 1974, Jornal de Bairro, p. 3.
[10] Ibidem.
[11] JOVENS fazem uma ginkana pelo bairro São Bernardo. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p. 5, 23 maio 1972; SÃO BERNARDO mostra força de uma comunidade. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p. 3, 29 jul. 1972; ESCOLA Maria Amélia inicia aula com 200 alunos. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p. 6, 15 fev. 1975.
[12] BAIRROS: Federação analisa grupos que operam isolados. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p.5, 01 mar. 1978.


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